Care você,
Quem diria que essa coisa de visitar bibliotecas me faria ler mais, não é mesmo? Enquanto meu namorado aos poucos se acostumou a me ver pegar mais livros do que lê-los, sempre tive consciência de que uso a biblioteca do Parque Villa-Lobos mais como desculpa para pedalar e espairecer: simultaneamente, um exercício físico e um tipo de meditação.
No entanto, devido à empolgação por poder emprestar livros em mais bibliotecas, tenho lido mais de fato. No momento, estou com os 14 volumes possíveis: 5 da Biblioteca Villa-Lobos (BVL), 5 do SESC Bom Retiro (SBR) e 4 da Biblioteca Mário de Andrade (BMA). Todos me interessam, por motivos diferentes, e eu devolveria todos lidos se pudesse me dividir em três.
Se fossem só esses 14, era tarefa fácil. Porém, o leitor voraz de biblioteca não se contenta em devolver livros: precisa sair de lá com o mesmo número de obras que levou na mochila. Para além disso, é sabido que a literatura é um grande esquema em pirâmide: uma leitura leva à outra.
Um exemplo fácil: ler Dementia 21 (de Shintarō Kago) e Fragmentos do horror (de Junji Ito) me deixou com uma vontade danada de ler Uzumaki (também de Junji Ito)1. Porém querer não é poder: o livro é caro e não está disponível para empréstimo (ao menos não agora: o SESC Carmo possui um exemplar, mas está emprestado).
Outro exemplo, dessa vez inaudito — adjetivo chique para dizer “por essa eu não esperava”: fiquei com vontade de reler Bom crioulo, de Adolfo Caminha. Tudo começou com uma visita à gato sem rabo, livraria que só vende livros escritos por mulheres — acho que só abrem exceção para biografias delas escritas por eles. Não fui pra passear, mas pro lançamento dos Contos de Téffi, um projeto de anos puxado por Raquel Toledo e traduzido por ela, Letícia Mei e Priscila Marques.
Foi sentadinho que notei dois livros que me interessaram bastante e até tirei foto das capas para procurar em bibliotecas: Correio literário: ou como se tornar (ou não) um escritor, de Wislawa Szymborska — poeta que admiro demais — e uma obra da pesquisadora que mais li durante o mestrado.
Assim que O prego e o rinoceronte, de Regina Dalcastagnè, ficou disponível na BVL, comecei a lê-lo aos pouquinhos — lá mesmo, pois era um exemplar de consulta local. Li a introdução e dois capítulos em três visitas diferentes. Quando pude levar o livro pra casa, a leitura deslanchou: numa sentada, li quatro capítulos de uma vez. E o último destes, intitulado “Um retrato sem parede”, começava bem assim:
Com o passar do tempo, obras que surpreenderam pela originalidade costumam perder seu impacto, seja porque suas conquistas técnicas ou suas escolhas repertoriais já foram incorporadas e reinterpretadas pelos produtores literários, seja porque a surpresa do diferente costuma se esvaziar após sua própria execução. Não é o caso de Bom crioulo, de Adolfo Caminha. Lançado em 1895, com muito escândalo, ele continua, de algum modo, sendo uma perturbação em nosso cenário cultural. Reivindicado atualmente como o primeiro romance brasileiro a trazer a público um protagonista homossexual, Bom crioulo chama a atenção ainda para uma série de outras ausências em nossa literatura — não apenas a do século XIX, mas também a de hoje, que, de um modo geral, não dá guarida para personagens como Amaro.2
Abro aqui um parêntese: cerca de duas décadas atrás li o romance de Caminha na tela de um computador de mesa, num doc disponibilizado pelo Projeto Gutenberg. Foi também assim que li A carne, de Julio Ribeiro, e O 3º travesseiro, de Nelson Luiz de Carvalho. Tudo no sigilo: os arquivos eram renomeados com títulos de trabalho escolar, escondidos em pastas dentro de pastas dentro de pastas e criptografados com uma senha mais difícil que a outra3.
Não lembro muito bem das leituras, só lembro que nenhuma me “empolgou”.
Ainda dentro do parêntese: era cansativo o tanto que citavam Bom crioulo quando eu buscava conversar sobre homossexualidade na literatura contemporânea brasileira, por ser o tema de minha dissertação no mestrado. Lembro bem de — numa Flip há quase uma década — encaminhar uma pergunta para Mathieu Lindon e Silviano Santiago sobre literatura contemporânea brasileira, só para ver o adjetivo sequer ser enunciado pelo mediador, o que deu abertura para falarem só dos clássicos de sempre (a partir de 1:03:03)4:
Fim do parêntese e retorno ao “por essa eu não esperava”: justo Regina Dalcastagnè, que tanto li e me inspirou a falar de literatura contemporânea brasileira, me instigou a dar uma nova chance ao clássico de Adolfo Caminha e relê-lo com um novo olhar — me pegou bem num momento em que estou curtindo reler algumas obras. Ela até cita uma introdução escrita por João Silvério Trevisan para a edição da editora Hedra, cuja leitura só sedimentou minha decisão de correr atrás de Bom crioulo.
E foi assim que fui na BVL e peguei Bom crioulo, ao devolver o livro de Junji Ito. E a introdução do James N. Green nessa edição da Todavia é só mais uma confirmação de que fiz uma boa escolha!
Rolês preferidos da semana: Madonna em casa! Fiz drinks: sex on the beach, em homenagem ao Erotica e à praia de Copacabana. Não tiramos fotos, mas ficou uma marca da maquiagem de AlexXx na parede, de quando ele tombou fazendo piruetas ao som de “La Isla Bonita”.
Estou assistindo: Silo — devorei a primeira temporada em uma semana e achei mais legal do que o livro (li 1/3 do primeiro da trilogia quando lançou e achei cansativo); Matéria escura — eu estava jurando que seria uma dramédia romântica scifi, mas o final dos episódios lançados inicialmente me tirou a paz.
Vi também: Rivais — que filme excelente! Quando findaram os créditos, fiquei com vontade de me esconder entre as poltronas e ver as sessões seguintes. Sei que ainda não lançou, mas já quero os vinis da trilha sonora.
Lido: Boy dodói: histórias reais e ilustradas sobre masculinidade tóxica, coletânea organizada por Bebel Abreu, Carol Ito e Helô D'Angelo — divertida; Monstrans: experimentando horrormônios, de Lino Arruda — só faltava um capítulo para terminar essa, gostei bastante da cena deste; Os contos do Planta, nº 1, de Gustavo Ravaglio — inventivo e divertido; Dementia 21, de Shintarō Kago (Tradução de Drik Sada) — uma sandice maravilhosa; Fragmentos do horror, de Junji Ito (Tradução de Akemi Ono) — de longe a coletânea do autor que achei mais fluida; Luz que fenece, de Barbara Baldi (Tradução de Júlio Schneider) — bela e dramática; Contos d’escárnio: textos grotescos, de Hilda Hilst — uma leitura que complementou a experiência de ler O presidente pornô, de Bruna Kalil Othero; Três camadas de noite, de Vanessa Barbara — sempre excelente ler obra nova de uma das minhas escritoras favoritas, devorei até chegar a um final esperançoso que me lembrou da frase dela que tatuei5.
Lendo: O prego e o rinoceronte, de Regina Dalcastagnè; e Bom crioulo, de Adolfo Caminha.
Como vai o romance: Desculpa, na última semana só fiz surtar por conta de grana e busca de emprego. Acho que por isso que me enfiei tanto nos livros (e nada de escrever ficção).
O primeiro na vitrola: Em nome da estrela, de Xênia França.
Hoje também ouvimos: Rito de Passá, de Mc Tha; Dolores Dala Guardião do Alívio, de Rico Dalasam; #1, de Jaloo; Euphoria (Season 2 Sountrack), de vários artistas; Melodrama, de Lorde; Deixa eu dizer, de Claudia; Love to Love You Baby, de Donna Summer; Serotonina, de João Donato; Love Tracks, de Gloria Gaynor; ~how i’m feeling~, de Lauv. Todos na vitrola.
Recomendo: Seane! A nova edição de sua newsletter, à vontade, começa com um livro que amei (mais um que fiquei com vontade de reler) e termina com um cutucão-cotovelada que me tirou do marasmo. Será que agora vai?
Eu já tinha agendado o envio dessa carta quando fui agraciado com edição nova d’A Hortaliça! Nessa edição seguimos pela ZN conhecendo a arquitetura de pequenos parques. <3
Vou recomendar também o remix da trilha sonora do filme Rivais. Foi o que fiquei ouvindo repetidamente quando concluí a carta de hoje.
Não rolou o primeiro na vitrola semana passada, né? Precisei dar uma pausa e me fez bem.
Para além disso, tenho sentido falta de escrever mais sobre livros, sabe? Fiquei querendo escrever sobre o que pensei enquanto lia O presidente pornô e debatia sobre ele no primeiro encontro do Clube de literatura erótica. Mais que isso, pensei em surpreender e escrever um longo ensaio sobre o último romance de Vanessa Barbara — assunto é que não falta. Em vez disso, me empolguei na digressão da carta de hoje: com um tema menos ambicioso, eu consigo escrever em dois dias — se tivesse deixado pra depois da releitura, a coisa mudaria de figura. Enfim.
O próximo o primeiro na vitrola ainda será sobre Love Tracks, de Gloria Gaynor — começo a escrever assim que essa carta chegar na sua caixa de entrada. Hoje os assinantes gratuitos também receberam a edição #5, que foi sobre No tempo da intolerância, de Elza Soares.
Um aceno e um alento,
Arthur Tertuliano
É fácil de explicar, basta ver a imagem que abre o primeiro capítulo de Dementia 21 (à esquerda) e a capa de Uzumaki (à direita, junto com uma imagem famosa dessa HQ, logo abaixo).
Você consegue ler um pouco mais alguns trechos desse artigo no site da editora Todavia: ele virou o posfácio de sua edição de Bom crioulo, lançada em 2019, sob o título “Um romance ambíguo e desafiador”.
Perdi muita coisa que escrevi na adolescência, como minhas primeiras tentativas de escrever um diário, simplesmente porque não lembrava de nenhuma senha.
Paulo Roberto Pires ter falado que misturou perguntas da plateia é o que me conforta: acho difícil que eu tenha incluído porcentagens no papel que escrevi, pois detesto números. Até procurei na pesquisa de Regina Dalcastagnè se era de lá a referência, mas não encontrei esses 7% ou 17%.
Em breve devo me aventurar pela escrita de uma resenha do livro (ou um ensaio?). Provavelmente terá o título “Quatro camadas de noite”. Fiquem ligades!
Os leitores atentos desta amada newsletter terão reparado: na foto constam apenas 13 livros, embora o limite da fatura combinada das bibliotecas seja 14. Aguardamos o flashback sobre o destino do Livro Esquecido.
Tem gente morrendo de inveja de você pegando tantos livros em bibliotecas e lendo tanta coisa que parece excelente!