O primeiro na vitrola funciona assim: o disco escolhido foi o primeiro a tocar no dia que escrevi uma carta, seguindo a ordem delas — o de hoje saiu diretamente de “Mau vencedor”.
Na primeira parte da coluna, escrevo mais objetivamente sobre alguns tópicos: como conheci o artista, características físicas do disco, o que gosto nele, onde o adquiri, músicas favoritas e alguma curiosidade. Na segunda parte, suspendemos a descrença e a distância para nos encontrarmos em minha casa, tomar um drink e ouvir o álbum — ah, o poder das palavras...
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Boa leitura a todes!
Update 16/09/2024: atualizei os registros visuais, agora com fotos produzidas por AlexXx, também conhecido como mozão.
No tempo da intolerância, de Elza Soares
Como a conheci: Acho que a primeira vez que ouvi falar de Elza Soares, associando nome e rosto, foi quando fizeram o filme Garrincha - Estrela solitária — Taís Araújo a interpretou nessa cinebiografia. Nunca assisti ao filme.
Musicalmente, conheci quando muitas pessoas elogiaram Mulher do fim do mundo. Demorei a ouvir e, quando finalmente o fiz, me apaixonei. Quis porque quis ver um show dessa turnê, mas ela já tinha encerrado. Nos shows que consegui ver (uns três ou quatro, acredito), sempre faltavam alguma canção desse álbum tão icônico.
Características físicas: A capa é simples e a arte mescla vários elementos iconográficos de movimentos sociais. Dentro há um encarte: poster de um lado (acima), com as letras no verso. O disco é amarelo opaco e pesa os 140g característicos das edições da Noize.
Esse é o primeiro álbum da artista que adquirimos, de dois no total (no momento em que escrevo essa coluna).
O que gosto no álbum: Adoro o pôster, a cor do disco e o adesivo central do lado B, que parece uma tenda de circo.
Onde adquirimos: Assinatura da Noize Record Club, foi o segundo disco que recebemos dela.
Favoritas: “No tempo da intolerância”, “Pra ver se melhora”, “Coragem”, “Rainha africana” e “No compasso da vida” são as que mais gosto.
Curiosidade: Esse é considerado o primeiro álbum autoral da cantora: 7 de suas 10 faixas foram compostas pela artista, em momentos diferentes da vida dela. Algumas letras foram resgatadas de um caderno escrito por Elza Soares ainda nos anos 1980!
Plus: morro de raiva de ter perdido de ver o musical dela. Vou ficar atento para ver se houver nova temporada em São Paulo. Desse dela e o do Ney Matogrosso.
Um passeio pelo disco
Você chegou em minha famosa casa rosa e a bebida que recebeu de mim foi um vinho branco com uvas ver congeladas. “Nada de drink hoje?”, você me diz e eu respondo: “Tô com preguiça e acho que nossa rainha africana ia curtir um chardonnay geladíssimo.” e lá vou eu ajeitar a vitrola. Ao pôr a agulha no disco, começa o primeiro discurso.
01+02_Justiça+No tempo da intolerância: Se eu — que só cresci em otimismo após sair do armário e da casa dos pais — sofri com os revezes conservadores dos últimos tempos, imagina Elza Soares que viu os desmandos da ditadura e viveu tempo suficiente para ver muitos falando desde “não era tão ruim assim” até “naqueles tempos era melhor!”? A rainha sabia do que estava falando ao dizer que a luta continuava.
A canção que dá nome ao disco não podia começar de forma mais potente. Ela vai além da famosa polarização1 e mostra como a recusa à conversa nos fecha em bolhas das mais diversas — “Ninguém mais pode pensar o contrário”. Adoro a referência bíblica — “Tá todo mundo atirando pedra/ com a vida cheia de pecado” —, mas ainda prefiro a citação a Martin Luther King.
Um começo potente, com o pé na porta.
Eu nunca disse que a luta tinha terminado.
Mas eu apanho de todos os lados
Eles dizem que eu sou polêmica
Como dizia Luther King
Se você quer um inimigo
É só falar o que pensa
03_Pra ver se melhora: Enquanto lia sobre o disco2 encontrei essa citação de Pedro Loureiro (empresário de Elza desde 2015 e diretor artístico desse disco póstumo): “São dois registros, um caderno e uma agenda. Ela usou uma lista de compras de mercado para construir uma das faixas”. Certeza que é sobre essa canção que ele se referia.
Gosto dos dois lados da faixa: o realismo que fala abertamente sobre como “A fome tem pressa, mas grana não sobra”, com tudo caro; e o sonho do dia “que o sol vai brilhar”. Penso tanto na ansiedade do dia a dia, da busca por emprego cada vez mais premente, quanto na felicidade que é gastar (o mesmo que gastaria num rolê aleatório paulistano) para receber amigos em casa, fazendo uma comidinha e alguns drinks.
A gente não se limita à grana que a gente tem, a gente é do tamanho dos nossos sonhos.
Salada de fruta com creme de leite
Pra adoçar o paladar
Ouvindo meu samba com rádio no talo
Enquanto não rola o jeito é sonhar
04_Coragem: Aqui eu lembro do “eu apanho de todos os lados” de duas canções atrás — e, por que não?, do “Eu sou mulher do fim do mundo/ eu vou, eu vou, eu vou cantar/ me deixem cantar até o fim: Lá-lá-lá-laiá-lá-lá-laiá”, da icônica “Mulher do fim do mundo”. Apanha pois “nasci pobre, preta, da corda noite/ acostumada a ver meus ancestrais/ sofrerem no açoite”, mas sem deixar de denunciar essa injustiça nem nos últimos anos de sua vida. (“eles dizem que sou polêmica”). E tem jeito melhor de fazer isso do que cantando?
“Se você é preto, coragem, meu bem, porque o medo da morte leva a vida também.” Senhoras e senhores, que verso!
Se quem cala, consente
A minha boca vai continuar
Sendo uma arma letal
Contra o abuso de poder
Pra gente sair
Da página policial
05_Te quiero: Essa é pros românticos — AlexXx inclusive soltou minha mão na rua quando descobriu que não incluí essa nas minhas favoritas. Belissimamente cafona, essa música é sobre aprender com os erros e preferir escutar um bolero quando a saudade bate, ao invés de ligar pro ex. Gosto muito da breguice em espanhol do “te quiero”.
E confesso que, agora que trocamos a agulha da vitrola, sinto um pouco de saudade da repetição eterna de “com alguém do passado” — muito esquisito ouvir a música lisinha, sem mozão se levantar e fazer alguma mágica pra canção continuar.
Eu não divido o presente
Com alguém do passado
Que não tem futuro
06_Rainha africana: Viramos o disco e colocamos mais vinho nas taças para acompanhar minha favorita do lado B. Algo em “lelé da cuca” e “brasuca” me deixou desconfiado e foi tiro e queda: essa é uma composição de Rita Lee3. Gosto da simplicidade da letra, como vai direto ao ponto. Quando ela canta “que passou por muita dor”, o tom tão baixo que sai quase falado, a dor é só um detalhe porque o verso “mas aqui estou” surge rapidinho. Combina com “Mulher do fim do mundo” e encaixa direitinho com as memórias dos últimos shows da rainha, sentadinha em seu trono. Linda, linda.
Eis-me aqui
Rainha africana
Brasuca sul-americana
Poderosa no meu trono
07_Mulher pra mulher (A Voz Triunfal): Mais uma composição de outrem (Josyara), mais uma fala de Elza antes da canção começar. Enquanto em “Coragem”, ela alerta “Se você é preto, não se iluda, meu bem: entre eles e nós, a lei protege quem?”, aqui o tema é feminismo e interseccionalidade4.
Elza começa bradando o empoderamento e o maior poder de fala das mulheres, mas quando canta já conclama: “Bora lá, vamos conversar, tá mais que na hora. Bora lá, vai ter que pautar, escutar, incluir, no seu feminismo de bandeira branca, a minha pele negra.” Bandeira branca tanto pela rendição da luta quanto pela cor do feminismo a estende.
No feminismo negro, a “batalha é dupla”, não ignora a luta, “mas fique sabendo a minha luta-dor, atravessou o mar”. Lindo demais ver Elza cantando sobre tudo isso.
Olha só essa síndrome de princesa Isabel
Encontrando sua redenção, querendo ir pro céu
Nós deixando ao léu só com seu papel
Sem reparação, sem descolonizar
O seu feminismo de bandeira branca
Vai ter que sair do palácio
08_Feminelza: Antes de tudo, que título perfeito para uma música — Pitty acertou em cheio aqui. A faixa aborda direitos reprodutivos da mulher e ainda dá uma cutucada em quem chama feministas de nazi: “só repetiu, feito papagaio/ aquilo que ouviu por aí falar”. Forte.
Respeite esse corpo que dele sai gente
Que sangra sem morrer
Respeite esse corpo, ele não lhe pertence
Feminino corpo vai prevalecer
09_Quem disse: Dignidade é pedir demais? Mais uma letra simples, forte e que vai direto ao ponto.
Como sobrevive o pobre
Se o mundo tem como espelho
Carro importado, roupa de marca e muito dinheiro?
Pela dignidade perdeu-se o respeito
Mas pobre carrega pobre
Rico pensa em si mesmo
10_No compasso da vida: Essa música é um abraço, forma perfeita de terminar um disco tão bonito e necessário. “Ela é dona dela agora” casa direitinho com “Eu não tenho dono” da composição que dá início ao lado B.
Eu comecei a ficar emocionado aqui, a gatinha veio se esfregar em mim e no computador. Saio do editor de texto para convidar a vida pra sambar, como Elza queria.
A mente parece que sente a alma da gente na boca do povo
O vinho na taça acabou, você quer mais e eu te pergunto: o que quer ouvir agora?
Espero que tenha gostado!
Um abraço forte e até a próxima edição!
Recurso importante na manutenção de um paradigma arraigado ao binarismo!
(Desculpe-me, o vinho bateu, assim como a leitura recente de um livro do Preciado. Spoiler: do jeito que não consigo pensar em outra coisa, provavelmente falarei dele na próxima carta.)
E isso é uma coisa que tenho amado, especialmente em discos brasileiros e clássicos: descobrir o tanto de história que há por trás, o tanto que há para se descobrir quando lemos sobre o histórico de seu lançamento, como ele foi recebido por público e crítica.
Trecho de Outra autobiografia, de Rita Lee: “Pouco antes de eu ser diagnosticada com câncer, ela me pediu uma música para gravar. A letra baixou em dez minutos. Pensei em sua figura majestosa e nasceu “Rainha africana”. Rob fez a música, fomos ao estúdio na garagem, gravamos uma demo e mandamos para ela. Tudo no mesmo dia. Lembro que tive que me esforçar mais para cantar; coisas do tumor que já estava ali. Elza, assim que ouviu, já mandou um áudio. 'Ô Rita, que prazer imenso ouvir você cantando essa música pra mim. Muito obrigada. Te adoro, criatura'. [...] Fiquei sabendo que a música que fizemos foi uma das últimas a serem gravadas por Elza.”
Amo essa palavra, chique demais, mas não precisa ter medo dela. Segundo definição que encontrei no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios “é a interação ou sobreposição de fatores sociais que definem a identidade de uma pessoa e a forma como isso irá impactar sua relação com a sociedade e seu acesso a direitos”. Ou seja, há diferença no feminismo na medida em que há diferença entre ser mulher e ser mulher “pobre, preta, da cor da noite”.