Amigue queride, como estás?
Eu tô feliz, sabe? A última carta parece ter desatado algo no meu peito. Não apenas pela recepção elogiosa de querides, nos comentários e no zap, mas pela consciência de que não escrevo tanto assim há muito tempo. Nem quando fiquei semanas sendo praticamente o único a publicar no Posfácio — Gigio sempre me incentivando nos bastidores. Pudera, nem quando fiz dois semestres da oficina de criação literária do Xerxenesky!
Admito que provavelmente me sabotei durante esse curso. Eu não fazia os exercícios semanais por não me interessar em escrever contos: só queria trabalhar no romance. Jurei que sairia da pandemia — caso sobrevivesse a ela — com um livro pronto. Tempo livre, trancado em casa, sem distrações, moderadamente deprimido: todes sabem que essas são as CNTP (condições normais de temperatura e pressão) ideais para um clássico contemporâneo surgir!
Nunca fui bom em projetos (o diagnóstico tardio de TDAH ajudou a explicar o porquê), mas isso aqui não me parece um deles. Gosto de escrever cartas, mandar sinal de vida para quem eu amo, então nem dói. Também não digo que saia fácil: sento na cama com o note no colo e logo vem a vontade de falar sobre a vida, o universo e tudo mais, preciso me controlar e me editar; escrevo um parágrafo e invento de reler tudo até ele, numa mistura de perfeccionismo com procrastinação; dou atenção às seções que vêm no finzinho, quando travo; me distraio com os discos que Alex escolhe para tocar1:
Enquanto isso, anoitece em certas regiões
E se pudéssemos ter a velocidade para ver tudo?
Assistiríamos tudo
E desse processo sempre sai alguma coisa. Semanalmente. Todavia tenho consciência de que escrever ficção, o que quero, não é só fazer da escrita um hábito. Mesmo escritores mais físicos, admitem o grau de esforço necessário para ser romancista:
O desconforto é necessário, portanto. Algum isolamento também. Mas viver também o é, conforme Woolf descreve em um dos ensaios selecionados de A leitora incomum, com tradução de Emanuela Siqueira:
Juntando as duas citações acima, lembro bem de como me sentia antigamente ao escrever. Para além do sofrimento, agora percebo que passava pela vida como se num experimento antropológico. Não experimentava coisas novas em São Paulo pelo prazer de vivê-las, mas como se fizesse um estudo de personagens e precisasse entendê-los melhor — cheguei a fazer anotações, bêbado em baladas, numa conversa do zap com o escritor Eric Novello, notas essa que apenas eu conseguia compreender depois.
Não sei se vai ser sofrido voltar a escrever ficção2, porém uma coisa mudou pra valer: eu vivo com tesão3. Tesão pela vida, não a vida-como-objeto-da-escrita. Vivo por mim mesmo, não por Raul, Gustavo, Alice, Catarina, Gustavo, André ou Alexander. Se vou à PopPorn e compro uma toalha do Baile Pink por ter resolvido me jogar na piscina, não estou pensando “e se aquela cena da piscina com Raul for no meio de uma balada?”, mas sim com tesão de entrar na água para me refrescar do calor que uma festa safada e gostosa me fez sentir num dia frio.
(Pode parecer estranho, mas não vejo muita diferença entre mortificar a carne para viver tão somente pensando na que começa após a morte e ser incapaz de viver de verdade, dando caráter instrumental a cada decisão tomada, tudo em prol do fazer literário.)
Voltando: até escrever tem sido um tesão. Chega sexta, eu acordo mais animado, curioso a respeito de qual disco Alex vai escolher para ser o primeiro na vitrola. É hora de admitir quais livros foram abandonados e quais vão para a lista de lidos ou permanecem na “lendo” — além de escolher o rolê preferido da semana. Note no colo, penso em você, no quero contar a você dessa vez. E lembro do lançamento do livro traduzido por uma amiga, da mediadora chata perguntando “quem ainda escreve cartas?” e eu quase levantando a mão4.
Essa carta é um agradecimento pela sua leitura. De coração.
Rolê preferido da semana: o aniversário do cu(nhado) que em breve será pai. Parabéns, Dilson! Foi um churrasco gostoso, família reunida demonstrando todo o amor com que Cairo será recebido ao nascer. No dia mesmo já encomendei mais um livro infantil pra minha biblioteca: serei o tio que mais vai incentivar a leitura desse menino!
Estou assistindo: A descoberta das bruxas — tivemos problemas com a internet e tô correndo contra o tempo para terminar a série, pois ela sai do catálogo da Globoplay na segunda-feira; e X-Men ‘97 — não gostei do 1º episódio, mas o 2º e o 3º me deixaram animadíssimo!
Vi também: Priscilla — preciso descobrir em qual parte dormi, estava exausto; e Basquiat — nesse foi Alex quem dormiu, mas tudo bem: ele já tinha visto o filme mais de uma vez.
Lido: A menina invisível e outras histórias de visagem, de Mary Wollstonecraft Shelley (tradução de Emanuela Siqueira) — leitura deliciosa, numa edição caprichada; Transfeminismo, de Paul B. Preciado — um cordel rapidinho de ler (tem inteiro no site da n-1 edições), cujos textos acredito que foram extraídos do (ótimo) Um apartamento em Urano; e Dia sim dia não fazer chantagem, de Maria Isabel Iorio — foi meu primeiro contato com a coleção “Canto quebrado” da editora Quelônio e que leitura excelente!
Lendo: A leitora incomum, de Virginia Woolf (tradução de Emanuela Siqueira) — estou relendo para um ensaio longo, o primeiro financiado pelos assinantes d’o leitor comum, e a leitura está tão gostosa quanto da primeira vez; O prego e o rinoceronte, de Regina Dalcastagné — li mais um capítulo no exemplar de consulta local da Biblioteca Villa-Lobos, dessa vez uma comparação entre pai e filho árabes com livros que tocam de modo diferente o tema da autoficção; e Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para um academia de psicanalistas, de Paul B. Preciado (tradução de Carla Rodrigues) — esse eu comecei a ler no celular, esperando o busão e lamentando não ter levado A leitora incomum pra baladinha flopada.
O primeiro na vitrola: Hair, trilha sonora original do filme de 1972.
Fotos e vídeo: AlexXx Place
Hoje também ouvimos: …pois é, de Ney Matogrosso; Never Can Say Goodbye, de Gloria Gaynor; SOUR, de Olivia Rodrigo; Grandes Compositores: Noel Rosa (Série Inesquecível), de Noel Rosa; Gostoso veneno, de Alcione; Verde, anil, amarelo, cor-de-rosa e carvão, de Marisa Monte; Inútil paisagem — as maiores composições de Antonio Carlos Jobim, de Eumir Deodato; Dolores Dala Guardião do Alívio, de Rico Dalasam; Tribalistas, de Tribalistas; Em nome da estrela, de Xenia França; e Alumbramento, de Djavan.
Recomendo: Seane, sempre! É um privilégio acompanhar uma amiga (de quem comecei a me aproximar quando soube que tínhamos uma escritora favorita em comum — a saber, Vanessa Barbara) se tornar ela mesma uma escritora favorita. Perdendo o controle do texto, mas bem à vontade. Já quero ler o conto que escreveu, bem como a próxima newsletter, cujo tema ela parece ter antecipado.
Por falar em Vanessa Barbara, eu queria grifar tudo na última edição d’A Hortaliça. Tolinho: a publicação é basicamente uma coletânea de grifos. Pois bem: aplaudo mais uma excelente curadoria de bobices. Deletei-me com todas! Terminei a leitura também com uma afeição desmedida por besouros. E ainda mais fã da autora, após mais um editorial engraçadíssimo.
Fiquei com vontade de ler todas as indicações de Taize, assim como de ver Constelação, seriado que indiretamente me fez ver Lamb semanas atrás. Em suma, vale a pena conferir a última edição de sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa.
Aliás, foi assim que soube desse artigo (com título bem chamativo e bait!) do Cronofobia: por indicação de Taize! “Assim como?”, você me pergunta e eu te digo: se você usa o app do Substack, nele os criadores de newsletter costumam compartilhar o que andam lendo — eu mesmo posto por lá os textos que curti ler, esses que listo nesta seção.
Por fim, autopromoção: dez anos atrás escrevi uma coluna sobre procrastinação, que revisitei recentemente durante um curso de narrativas híbridas na web. Estamos produzindo videoensaios para apresentar no último encontro e, como perdi a aula em que se dividiram grupos e temas, preferi fazer sozinho. Busquei inspiração em algum texto antigo com mais apelo visual e gostei de me reler “Mandando a real” — espero que você goste também.
A edição mais recente d’o primeiro na vitrola foi sobre Fantasia, de Gal Costa, e a próxima será sobre Chromatica, de Lady Gaga. Ufa, é isso!
Um abraço apertado de,
Arthur Tertuliano
Comecinho de “Enquanto isso”, de Marisa Monte, canção de Verde, anil, amarelo, cor-de-rosa e carvão. Esse foi um pedido meu, porque do nada me deu vontade de ouvir essa música.
Descubro em breve: resolvi recomeçar a escrita do romance tão adiado. Semana que vem escrevo sobre em outra nota de rodapé, que é para eu não me sentir pressionado. Fica sendo um segredinho entre nós, leitores de notas de rodapé.
Eu já morei em Curitiba e lá eles usam a palavra indiscriminadamente. Gosto disso.
Se não fosse por isso, seria para tirar o microfone de suas mãos egóicas e devolvê-lo à pesquisadora, única pessoa que deveria estar falando no rolê.
Que a gente possa continuar saboreando muito mais do nosso estudo antropológico que é viver, e buscar se maravilhar com os eventos que se desenrolam na nossa frente <3