Queride amigue, como você está?
Foi interessante terminar a carta anterior. Ainda que eu acredite na escrita epistolar que é feita de uma vez só, me desafiei a concluir o que tinha deixado pela metade por um motivo de ordem prática: se quero escrever um romance, preciso exercitar essa continuidade da escrita. Não tenho nadinha de Kerouac pra escrever On the road num ímpeto só.
Digo “foi interessante” por ser algo que comecei a escrever antes da mordida de cachorro bem na entrada do Parque Villa-Lobos, onde fica a biblioteca que mais frequento. Desde então minha fase fitness deu uma desandada: precisei me recuperar (4 doses de antirrábica!), depois o frio chegou. Daí terminei uma carta sobre os benefícios de ler livros fininhos e pedalar todos os dias me sentindo culpado por ter retomado o sedentarismo. Não apenas: depois deles, fiquei um tempão sem terminar livro algum.
Mas não foi por isso que resolvi dar uma chance à Audible, tampouco pela período de degustação que a Amazon ofereceu. Aponto o dedo para os culpados: os novos fones que comprei (não mentiram, os da JBL são excelentes) e um canal do YouTube chamado Answer in Progress. Teve um dia que passei horas assistindo a vídeos deste1, dois do quais me deram um empurrãozinho na direção dos audiolivros: um parte da pergunta “por que continuamos a comprar livros que não lemos?”, enquanto o outro vem de “por que não lemos tanto quanto antes?”.
Se, no primeiro, os audiolivros apareciam apenas incidentalmente (como uma das soluções para o espaço físico ocupado pelas pilhas de livros nunca abertos), no vídeo seguinte eles fazem parte do desafio a que Sabrina se propõe: ler um livro por dia durante uma semana de trabalho. Elu esquematiza então 5 tratamentos para a leitura: na segunda-feira, nada de pressão, “only vibes”; na terça tem recompensa se terminar um livro antes da meia-noite (pizza!); na quarta, nada de telas e distrações; quinta é dia de meta de páginas lidas por hora, com punição quando não bate a meta (wall sit até não aguentar mais); finalmente, ouve um audiolivro na sexta.
Gostei de descobrir como Sabrina lidou com a questão “distração” enquanto lia pelos ouvidos: acompanhou com os olhos a edição física do mesmo título. É algo que sei que funciona comigo também — seja pelas experiências de leitura conjunta da Bíblia nos meus tempos de igreja, seja pelas vezes em que participei de clubes de leitura.
Eu fiquei com vontade, no entanto, de me aventurar e escutar audiolivros enquanto lavava louça, ia ao mercado ou pegava um busão. E assim o fiz. A seguir meu Top 5 (de 5!) escritores que li/escutei na Audible.
5º lugar — Madeline Miller, com Galateia: um conto, traduzido por Fernanda Cosenza e narrado por Carla Dias
Achei a narrativa bem mais ou menos, confesso. Talvez por já ter lido uma novela (que considerei bem melhor) inspirada por uma história nas Metamorfoses, de Ovídio — a saber: Garota encontra garoto, de Ali Smith (traduzido por Beth Vieira).
Essa versão alternativa da lenda de Pigmalião, que inspirou tanto peças e filmes (como My Fair Lady), quanto novelas e séries (olá, Ugly Betty), é tão ambiciosa em temas caros aos leitores contemporâneos quanto… curta. Para cumprir o que promete, se vale de elipses demais — talvez uma tentativa de ser misteriosa e/ou poética que não funcionou.
Nem o fato de ser uma narrativa curtinha serviu como ponto positivo: sinceramente, eu preferia ter dado um cochilo. Mas ainda darei uma chance à Canção de Aquiles, da mesma autora.
4º lugar — Sofia Nestrovski, com A história invisível, narrado pela própria autora
Esse foi o primeiro que escolhi na Audible porque já queria ler. A edição física é lindinha, bem pequena e tem ilustrações bonitas. Pelo tamanho, até daria pra devorar na livraria mesmo, não fosse o meu cérebro dar um nó toda vez que lia as primeiras frases.
Escutar o audiolivro, no entanto, foi gostosinho. Prontamente fui levado pela prosa poética da autora e mergulhei nas aventuras de Sofia (ou bisnaguinha). A narrativa nem sempre faz muito sentido, condizente com a proposta de uma narrativa chamada pela Fósforo de “essa versão século 21 de Alice no País das Maravilhas” — se eu não fosse tão avesso a ler sinopses, poderia ter isso em mente quando folheei o livro físico.
Ouviria novamente? Com certeza! Parece haver muito a desvelar em cada leitura, como costuma ser com poesia.
3º lugar — Sofia Soter, com Festa infernal, narrado por Leticia Madeira
Esse foi o primeiro em que dei play na plataforma e serviu de experimento para minhas preferências: prefiro um volume mediano, com cancelamento de ruído, velocidade ligeiramente maior (1,25x), enquanto faço alguma atividade repetitiva (lavar louça, varrer casa, andar até o mercado) com o celular relativamente inacessível — afinal basta ler uma notificação que meu cérebro deixa de prestar atenção no que ouço. Aliás, foi quando retomei a leitura na manhã seguinte que percebi minha distração: enquanto escolhia outros audiolivros para escutar: meu cérebro escapou totalmente.
Essa é uma boa amostra do talento da autora, cujo primeiro romance (O legado das águas) foi lançado há pouquíssimo tempo. Uma história clássica de filme adolescente dos anos 1990: uma série de assassinatos de alunos, que pode ou não ter motivações satanistas, cuja conclusão ocorre numa festa à fantasia. O livro flui que é uma beleza, apesar de eu me arrepiar de constrangimento quando a narradora modulava a voz para diferenciar as personagens. Tirando isso, uma leitura deliciosa, feito assistir a Garota infernal.
Ouviria novamente? Não, mas leria no Kindle, para apreciar melhor algumas referências pop (e achar fácil as músicas citadas, pro Spotify tocar enquanto leio).
2º lugar — Byung-Chul Han, com Infocracia: Digitalização e a crise da democracia (traduzido por Gabriel S. Philipson), Não-coisas: Reviravoltas do mundo da vida (traduzido por Rafael Rodrigues Garcia), Sociedade paliativa: A dor hoje e Vita contemplativa ou sobre a inatividade (ambos traduzidos por Lucas Machado) — todos narrados por Spencer Toth
Admito que fiquei deslumbrado com tantos livros do filósofo (que me conquistou com A sociedade do cansaço) disponíveis como audiolivros. Falo logo: foi muito melhor ouvir esses 4 livros listados acima na excelente dicção de Spencer Toth do que ler outros livros do autor que não tinham me pegado tanto, como Agonia do Eros, Topologia da violência e Sociedade da transparência.
Como filosofia não é muito a minha praia — sou mais curioso que connoisseur —, não deixo de me surpreender com o quanto os livros de Byung-Chul Han me atraem. Parcialmente isso se deve aos livros físicos formarem uma coleção linda quando vistos em conjunto — aliás, não vou reclamar nem um pouco se a Vozes resolver me mandar todos. Mas acredito que as coisas que mais gosto em suas obras sejam sua didática — ele cita muitos autores importantes, mas sempre de modo acessível — e sua preocupação com o mundo contemporâneo. Redes sociais, covid, inteligência artificial, nenhum assunto é quente demais para ser pensado por ele. Gosto disso.
Ouviria novamente? Sim, ainda que talvez já tenha feito isso — seja por reiniciar a leitura de um capítulo que não compreendi porque me distraí, seja porque muitos temas do autor se repetem em mais de um livro (posso não ter entendido uma ideia da primeira vez que a ouvi, mas percebi que ela já tinha se tornado familiar quando a ouvi no livro seguinte). Mas definitivamente também releria na edição física, rabiscando e fazendo anotações — alô, Vozes!
1º lugar — Marcelino Freire, com Contos negreiros e Angu de sangue, narrados pelo próprio autor
Se ler Marcelino Freire já é bom, ouvi-lo narrar seus próprios contos está em OUTRO patamar. Desde que o li pela primeira vez — indicação de Assionara Souza (in memoriam) em sua oficina de contos —, o escritor me conquistou com a oralidade que seus contos pedem. São poucos os autores que deixam tentado a ler em voz alta — assim, de cabeça, só consigo pensar em Adriana Falcão também.
Mas não é só ler em voz alta. Mesmo depois de, empolgado, ler para amigos (e minha mãe) “Totonha”, conto presente em Contos negreiros, é OUTRA a experiência de ouvir uma leitura de Marcelino Freire. Uma leitura anti-TDAH: não tem como se distrair, não há possibilidade de fuga do mergulho na narrativa. É só procurar no YouTube, o que não falta são exemplos.
Ouviria novamente? Sim, muitas vezes! Sei que ainda falta ouvir Seleta: por pior que pareça, mas eu ouviria as piores notícias dos seus lindos lábios qualquer coisa na narração de Marcelino, de bula de remédio a Paulo Freire (o que tem, por falar nisso, só não tá incluso na assinatura da Audible).
É isso. Video
JOGO RÁPIDO
O primeiro na vitrola: Special, de Lizzo
Lendo agora: A outra garota negra, de Zakiya Dalila Harris (tradução de Flávia Rössler e Maria Carmelita Dias)
Último filme visto: MaXXXine, dirigido por Ti West
Rolê massa: show do álbum Frevália, de Romero Ferro, no Sesc Pinheiros (leia mais a respeito desse projeto aqui)
Ontem foi aniversário de Taize, então não esqueça de ler e comentar seus parabéns na newsletter da gatinha, vamo dar surra de engajamento!
Como devem ter visto, voltei com os links da Amazon, pois toda oportunidade de monetização é válida pro leitor comum em carreira freelancer: você não paga a mais por isso, mas compras feitas usando meus links podem virar areia pra Jean-Michelle, não é?
Os assinantes premium recebem já já um post-scriptum exclusivo e, amanhã, mais uma edição d’o primeiro na vitrola, estrelando Live and More, de Donna Summer — que chega em 3 semanas pros demais assinantes. Depois dessa, a próxima edição será sobre o musical Hair, o disco com a versão do filme.
Abraço forte,
Tuca
Se você gostar da ideia, posso escrever uma carta falando sobre os meus favoritos.