Queride amigue, como você está?
Andei sumido, eu sei, afinal as últimas semanas foram intensas: catalogamos mais de mil livros da nossa biblioteca (ainda tem mais e precisamos fazer isso antes de pintarmos a sala); fui mordido por um cachorro (levei uns bons dias pra me recuperar); trabalhei durante o feriado da Parada LGBT e tive uma tese para revisar (quer ver este capricorniano feliz? manda jobs!). Mas estou de volta e pense na saudade!1
Nos dias repousando, aproveitei para ver alguns filmes. A curadoria foi feita a partir duma inquietação provocada pelas duas últimas edições d’o primeiro na vitrola — começou quando falei sobre Destino de aventureiro, de Ney Matogrosso, e seguiu com Love Tracks, de Gloria Gaynor.
Isso porque, você sabe bem, n’o primeiro na vitrola tem aquele primeiro tópico em que tento me lembrar de como ouvi falar dos artistas em questão. Gosto de matutar a respeito disso, afinal foram décadas evitando ouvir “música do mundo”, o que atrapalhou minha educação musical. Foi difícil enfrentar a constatação de que demorei tanto a ouvir Ney e Gloria porque, para além de evitar o que não louvasse a Deus, eu também precisava me afastar “da aparência do mal” — logo eu, que nunca enganei ninguém.
Algo semelhante ocorreu com filmes: as primeiras vezes que ouvi falar de títulos como Será que ele é? e Priscilla, a rainha do deserto foram por meio de piadinhas homofóbicas, isso numa época em que eu sabia bem menos sobre homossexualidade do que quem me chamava de “bicha”, “frango” ou aquela palavra estranha, “guei”2. Eu nada sabia desses filmes, apenas que precisava fugir do assunto quando fossem citados.
Pois bem: não os vi na época e meio que esqueci deles, mesmo depois de derrubar as portas do armário3. Foi só durante a pandemia que finalmente assisti a Priscilla (tem no Prime Video), me surpreendendo com a excelência do filme. Tudo nele mexeu comigo: a dinâmica dos personagens, o humor, os momentos tensos, os números musicais com trocas de maquiagem e figurinos nada realistas, a purpurina em cenas aleatórias, os créditos finais cheios de brincadeirinhas, a doçura da criança que deseja ver seus dois pais LGBT felizes4. Um filme que teria apaziguado meu coração infantil, que rebateria o principal ensinamento dos meus pais — “isso não é normal!” —, e eu só vi bem tarde.
Daí tem a questão: tarde mesmo? O bom de filme bom, creio, é que nunca é tarde para ver. Sendo assim fui atrás de algumas figurinhas carimbadas da cinematografia queer.
Será que ele é? (In & Out), disponível no Prime Video: o título brasileiro, tirado de uma clássica marchinha de carnaval, é uma tirada que me dá arrepios só de lembrar quantas vezes ouvi pelas costas, quase sempre acompanhada de risinhos. Até assistir ao filme, só conhecia a premissa: um professor é tirado do armário em cadeia nacional, no discurso de agradecimento de um ex-aluno ao receber o Oscar. Ninguém mais na cidadezinha dele sabia disso — incluindo o próprio, com casamento marcado com uma moça em alguns dias.
Eu jurava que a trama acompanharia um homem hétero afeminado que passaria a vivenciar loucuras e confusões comumente relacionadas a uma visão estereotipada do que é ser bicha. Gostei de estar enganado: ele ERA afinal. A cena do beijo entre Kevin Kline e Tom Selleck (infelizmente sem bigode) é impagável e acho que diz mais sobre o personagem do que as lições de masculinidade via fita cassete — o streaming só disponibilizou a versão dublada, o que deixa ainda mais ambíguo se rimos do ou com o protagonista.
O filme é bobinho, mas se concentra numa moral simples, básica até, mas bem importante até hoje: professores (e demais referências) LGBT não são más influências para a juventude e a infância5. Ver a comunidade da cidade se levantar em defesa do protagonista foi um momento bonito.
Gaiola das loucas (The Birdcage), também disponível no Prime Video: esse remake estadunidense de um filme francês tem uma proposta tão progressista (pra época) que chega dá a volta — o filho de um casal gay longevo pede a namorada em casamento e quer promover o encontro das duas famílias. Só tem um problema: como mozão é filha de um casal de direita (o pai, inclusive, é um político conhecido pelo conservadorismo), o garotão pede que seus pais se disfarcem de família tradicional, dessas de margarina.
Achei interessante ver o mundo pós-gay em que vivem a maioria dos personagens e as dificuldades de fazê-lo encaixar nos moldes WASP — sigla em inglês para branco, anglo-saxão e protestante6. Nathan Lane e Robin Williams (sexy de bigode e peito peludo à mostra) estão perfeitos em seus papéis, mas é este que rouba a cena pra mim. Adorei o momento abaixo: fiquei repetindo o que rola a partir do 1:04 por uns bons minutos.
Essa comédia dos erros, cheia de diálogos deliciosos, me deixou sorrindo um tempão durante os créditos finais.
De repente, Califórnia (Shelter), mais um disponível no Prime Video — juro que não é post pago (aliás, quem dera!): agora saímos do cinema mainstream, pois acho difícil este ser conhecido por quem não é da comunidade. Acredite: entre gays, ele é um clássico. Digamos que um romance de formação com protagonista brasileiro ambientado nos anos 2000 precisaria ter alguma cena com ele vendo esse filme e lendo O terceiro travesseiro, de Nelson Luiz de Carvalho. Aliás, foi esse o estereótipo que me afastou do filme: muita gente o ama tanto quanto ama esse livro — e eu não gostei nadinha de lê-lo.
Fui bem sem expectativa e me surpreendi positivamente. A história acompanha um jovem amante do surf e da arte do grafite que se vê preso num lugarzinho sem futuro, tanto pela falta de grana e perspectiva, quanto por ser como um pai para o sobrinho — sua irmã está mais preocupada com o namorado do que com o filho. Sua rotina é perturbada quando aparece o irmão mais velho do seu melhor amigo, um escritor e roteirista de cinema que acabou de se separar do namorado, alguém que abre seus olhos para outras possibilidades de vida.
Lindinho demais o filme, mais um final que encheu meu coração de esperança.
Weekend, não disponível nos streamings: esse aqui é um que eu estava doido para rever. Mesmo sendo mais recente (o filme é de 2011), ele já se tornou um clássico. A história é simples: um tímido salva-vidas de piscina conhece um artista queer na balada e a química entre os dois é incrível. Só tem um problema: eles só tem o final de semana, pois o artista está de mudança para o outro lado do Atlântico.
Se os filmes anteriores eu fiquei um tempão sem ver por homofobia internalizada e esquecimento, o caso de Weekend foi bem diferente. A primeira vez que comecei a vê-lo foi num cinema em Paris, ao lado de uma das minhas melhores amigas. Digo “comecei” por ter saído antes do final da sessão: o filme era tão real que me sufocou, tanto porque na época eu tentava a duras penas me esconder no armário (selei a única frestinha aberta nele depois do ghosting de um boy) quanto por não suportar a ideia de ter sido eu a levar minha amiga comigo. Ela até disse que estava gostando e que queria continuar vendo, mas eu precisava me “afastar da aparência do mal”.
Hoje rever esse que é um dos meus filmes favoritos, juntinho do meu amor, embaixo das cobertas… não tem preço!
Nunca fui santa (But I’m a Cheeleader), outro indisponível nos streamings: assisti a esse não debaixo das cobertas, mas em cima de uma, na exibição ao ar livre que rolou na Cinemateca Brasileira — na companhia de mozão e da ilustre Gabi Marx, criadora do índice LRS7 de avaliação cinematográfica. Não conhecia esse título até o citarem na temporada All Stars: All Winners de RuPaul’s Drag Race — a drag queen Jinkx Monsoon interpretou Natasha Lyonne, atriz que faz a protagonista do filme, e me deixou morrendo de vontade de assistir a ele.
But I’m a Cheeleader é uma sátira sobre uma líder de torcida, Megan, enviada a um acampamento de cura gay após a intervenção de seus pais, amigos e namorado. Lá ela se une a outros garotos e garotas que precisam seguir cinco passos a fim de deixarem o caminho da homossexualidade e virarem… “normais”. O primeiro passo é admitir que se é homossexual (algo que todo mundo já tinha percebido, menos a própria Megan) e o último antes da formatura é simular uma transa com alguém do sexo oposto.
O humor mordaz alivia o tema pesado e o retrato histriônico e histérico de héteros ajuda a desvelar a hipocrisia da heteronormatividade compulsória. RuPaul Charles interpretando um treinador ex-gay está perfeito no papel e Eddie Cibrian nunca esteve tão gostoso.
Não havia outra alternativa senão aplaudir ao final do filme. E o mais massa é que, dessa vez, não eram apenas eu e AlexXx aplaudindo, mas uma multidão de pessoas.
O primeiro na vitrola desta carta foi Dolores Dala Guardião do Alívio, de Rico Dalasam, e o livro que estou lendo é Virginia Woolf & Vita Sackville-West: cartas de amor, de Virginia Woolf e Vita Sackville-West (com tradução de Camila von Holdefer e introdução de Alison Bechdel).
No embalo do sprint final da catalogação da biblioteca pessoal, resolvi fazer uma brincadeira aqui e no instagram: quem adivinhar quantos livros são no total (ou chegar no número mais próximo) ganha um livro direto do meu acervo, um que eu achar que você vai gostar. Duas pessoas vão ganhar, uma aqui e uma no insta (e você pode tentar aqui e lá!).
Regras para participação aqui:
1. Ser assinante desta newsletter (tem que assinar, não seguir apenas!);
2. Comentar um número e o que gosta de ler (pode ser o último livro que gostou, gênero, algo pra guiar minha escolha de prêmio);
3. Ter endereço de entrega no território brasileiro.
Vale um comentário por pessoa e o resultado sai no dia 24/06, no Instagram e na próxima edição da newsletter!
Ah, e a próxima edição d’o primeiro na vitrola será sobre Live and More, de Donna Summer, que chega pros assinantes premium 3 semanas antes dos gratuitos.
Um abraço em quem estava com saudade de receber cartas minhas,
Arthur Tertuliano
Beijo especial pra Gigio, Tai e Gui, fiquei feliz com vocês comentando casualmente sobre a newsletter no meio da conversa; me senti lido, me senti querido!
Durante muito tempo pensei que tinham inventando ela só pra rimar na piada do “ei, ei! quem olhar pra mim é guei!”.
Eram de vidro, precisei limpar os cacos.
Até revi o filme esses dias e continuei apaixonado. A única questão que me pegou foi: eu preferia que fosse uma atriz trans no papel da drag mais velha. Eram outros os tempos, eu até entendo. Quero ver como será a continuação, que manterá o elenco original. Ah, e fiquei feliz em saber que a adaptação paulistana do musical que estreou agorinha conta com Verónica Valenttino e Wallie Ruy, que se alternam no papel da drag queen trans.
Fiquei pensando nisso enquanto ajudava minha cunhada a dar banho no filho que acabou de completar um mês de vida. Cantei “Born This Way” e “Alice”, de Lady Gaga, e “B2b”, de Charlie XCX, enquanto a mãe ajustava a temperatura da água. Tio gay é cultura!
E os entendo perfeitamente: tem coisa gay na minha casa que só reparo quando vem visita. Tipo algumas convidadas no meu aniversário reparando na coleção de dildos que ficava acima do espelho do banheiro — talvez a luz negra tenha destacado demais um de silicone amarelo neon.
Loiras, Rivalidade e Subtexto gay.
Adorei a lista e as reflexões! Não lembro de ter assistido a nenhum desses. O preconceito é como uma zona radiotiva: proibido se aproximar.